20100322

dodecacentro

faz sol, cheira a estrume e maconha

a mijo descansado

a silêncio e contra-filé

mais um pouco, rios recursados

(várzeas no meu destino)

a tino em popa a morte

alergia nas mãos e nos pés

visões do cadafalso

gente barroca abarrotada

entre pastéis marmita sonhos:

vômitos de ontem a hoje, gente

de pé cantando rota

a missa de domingo

muito simples, esse sistema

de rolo compressor e garrafas

essa mandinga rufia com cachorro ao lado

esse círculo a engolir pelo asfalto

e fuligens tecnicolor nas pombas

faz sol, seguimos

cegos e sedentos

dissidentes do amargo

comprando bijuterias

e caminhando – apenas

fazendo a lona

fotográfica







20100320

TRÊS PESSOAS, seguido de H. Helder

Imagino que hoje já tenha aumentado o calor. Duvido um pouco do que posso sentir com o corpo, as temperaturas já não são extremamente sensíveis, para quem, ainda, vive na cidade. Imagino que fora dos cimentos um mormaço pára, estou sem meias, não estaria sem se o calor não tivesse subido, constato, olhando os pés que são muitas vezes parte do corpo de uma outra pessoa, com unhas irreconhecíveis. Talvez por isso as meias. Não sei (mais) ler o termômetro pelo corpo. Soube?

Que homem é esse? Por que Bach, Hamlet e a prostituta? Por que ter viajado tanto, era para o dizer, apenas? Quando penso Bach vejo uma escada, uma escalada, ou coisas como neve, aquele alpinista da Montanha Sagrada que sonha com a dançarina alemã, sonha apenas. Ou catedrais, também coisa que aponta para o alto. Ensejo esforçado de sublimação. Esse homem está no ar, viaja num trem mudo, já não tem corpo, por isso a prostituta, fogo envergonhado mas necessário, para se provar enfim vivo. Esse homem talvez um esteta, um homem muito antigo, desajeitado de ser homem, muito maltratado, muito inteligente: cheio de oportunidades. Esse homem está fascinado pela idéia da emoção, a idéia construída de uma bela emoção, que só se dá em partes, como pé, mão, cabelo. O corpo todo, como disse, dissolveu. Não na fumaça do cigarro, mas na tensa neblina de seu aparato: suas leituras, seu mundo imaginado. Ele viajou porque é um homem da distância. Um homem que vê de longe, que ao tocar precisa logo que se atire a seta e que seja esplêndida a seta em sua contemplação. Não há egoísmo nesse homem, porque não há corpo. Um torvelinho de pós não pode criar a redoma de uma estrutura individualizada. O ar em si é só movimento e abstração: aí o corpo da prostituta e depois do corpo dele brevemente recomposto, a paralisia extática da distância, outra vez já assoprada sobre aquela cama, ainda quente. Ele não se preocupa com a mulher. Nem consigo mesmo pode se preocupar. Antes é preciso vir ao mundo, criar cosmo, dar continuidade a uma palavra, sentir o peso do membro molhado, engolir a língua do beijo sem dizê-lo ou entendê-lo. O homem preocupado com o entendimento, com a maneira de fazer circular um abdômen murcho, inflando e expirando as trocas pelo mesmo ar, ar comum ao homem e à mulher. Ele engole o ar, precisa de mais ar, ele crê. É falso, e ele sabe. Precisa é soprar, soprar nela, soprar como quem deixa um rastro, um cheiro. E depois ver o corpo do outro se abrir, sem metafísica, ao vento que saiu de sua atenção. O homem do ar está atento agora apenas em elevar-se, em dissolver-se sublimado: livros, música, a estetização fria de um profissional que enfeita e maquia os cadáveres. O corpo da mulher é um objeto que precisa ser entendido em idéia, em contemplação, precisa ser gracioso, harmônico e simétrico e não carregar um sapato sujo nas mãos. O corpo da mulher, já depois de deitado, é agora uma página nua que se inclina pelo quarto, desprovido de qualquer dignidade ou mesmo medo. É um móbile, uma estante, um parapeito, uma sacada que dá à cidade. Pode haver sim desesperos nisso. Talvez a brusca preocupação do homem com Bach, Pessoa, e Hamlet. Pode-se buscar no fingimento um álibi do ar. Fingir é deslocar o ar, quando se sabe disso. Ele sabe, ele elabora muito. E já está longe. Longe dos homens, das mulheres, das crianças e das cidades. Um céu cálido sem temperatura. Um pedaço de diálogo entre personagens. Um desejo – talvez – muito íntimo de sangue. De asas cadentes. Uma vontade de se queimar junto com sua biblioteca, uma vontade de abrir a cabeça com um machado para sair dali o vasto mundo distanciado e generoso. Querer amar com uma outra parte, aquela o coração? Pode ser uma idéia esplêndida, sem os sapatos entre os dedos.

Quem é essa mulher? E por que se prostitui? Há algo extremamente arrogante nessa mulher. Ela pensa que seu silencio, resignação e entrega podem salvar um homem. Ela parece quente, parece dedicar-se a ele, de algum modo escuso entre a vítima e a mãe. Sua fala quer perceber o movimento do outro. Ela não se concentra tanto no que pensa, no que ele poderia pensar, no sentido ideal de uma pequena e breve morte comungada, não pensa no ajuste técnico de seu corpo à beleza nele ansiada, não pensa muito se seria certo continuar aqui. Está bem, ela se pergunta: é por isso mesmo que retorno, a ele que me paga bem? Ela sabe a resposta. Essa pergunta é retórica, um jogo, um teatro: quer que tenhamos piedade dela. Quer dizer que escolheu este ofício, para além do desespero de qualquer ofício, porque há nela uma dosagem de mar, de nossa senhora, um culto mariano aos aflitos. Ainda a Vênus e os Navegadores. A Vênus intocada, pudica, que dá o corpo sem estar nele, dá porque nutre em si um alpendre mais alto, mais casto, uma mãe, a virgem Maria, Madalena. Isso afasta aquele homem. Ela não deixa que ele se aproxime. Não que ele soubesse como. Ou mesmo quisesse. Isso não sabemos. Mas sabemos que o jogo da distância é mútuo. Nenhum quer o outro ali, mas de alguma maneira responsabilizam o outro por isso. Sinto frieza nesses cabelos, nesse jogo de cena, nessa peça de auto-aprovação, para uma platéia de leitores, os juízes dessas duas pessoas, uma desmembrada pelo ar, outra enterrada pela água. Podemos supor: são dois corpos vivos? Realmente copulam? Ou se mostram e se explicam para a invisibilidade de um nós, um eu, um tu, sempre impossíveis de tocá-los? Por que se explicitam assim, por que é que desejam tanto a nossa escolha, que escolhamos um ou outro, como se se defendessem perante um tribunal de mãos e olhos que viram ou manipulam ou simplesmente vão fechar as letras e esquecer o livro. O livro e o seu cortejo de dores, desculpas, convencimentos. Não gosto desse jogo. Sinto-me ridícula em estar aqui, falando dele, dando-lhe a carne que falta, pondo-me nele, expondo. Será o jogo desses atores essa tocaia, a mim? A ti? Será que depois da cena, na página seguinte e inexistente, eles simplesmente tirariam a máscara, e até saíssem de mãos dadas? Há algo demasiado ensaiado nessa peça. Há algo muito antigo nessas pessoas. Que quer motivar em mim? Angústia, dó, indiferença? Diferença, compaixão, envolvimento? Penso, sinto: alternadamente. Cúmplice, talvez. Comprometida. Escrevendo.

Os dedos do pé enrijeceram. É o sinal de que a tarde será mais fria do que a manhã. De uma forma ou de outra, antes de me levantar e ir até a cozinha preparar algo de comer, os sinais dos pés me fazem bem, como se reintegrasse no corpo o sentido do frio e do calor, e pudesse, agora com meus próprios pés, caminhar até a gaveta e calçar uma grossa meia de lã. Com o livro caído ao lado do cobertor em que dormem as gatas. Um livro amassado, amaciado, amansado? Bruto. Vivo.

20100312

PAGU








não sou essa atravancada em arames sorrateira em vales escarpados essa



maiúscula tenaz avenida de malas às largas passadas (mais passado) quarto com luz



elétrica ares condicionados ao sono ao tumulto de quem não fala não se mexe antes



atenta lotada de tempos em desalinho essa mulher com toucas garrafas e bolachas essa



de gramofones afoita, lenta, congelada essa mulher em choque essa mulher parada